Uma grande tentação se apresenta: transformar a Canção do Reino em música de ninar

Criai em mim um coração que seja puro,
dai-me de novo um espírito decidido.

O salmista canta uma experiência pessoal e comunitária, revela em sua arte algo que se encontra no mais profundo do ser, harmoniza o trágico numa entonação de contemplação e gratidão. Oxalá se pudéssemos vivenciar esta quaresma compondo e cantando os salmos de aventuras afetivas, deixando a memória cordial ritmar a canção, sem medo de se expressar, utilizando o acorde da liberdade.

Assim fez o Artesão de Nazaré, salmodiou a “tragicidade” de uma humanidade esquizofrênica, dividida em suas incongruências. Amando-a numa ternura sem igual, tocou suas feridas, transformando a tragédia em gratuidade, salvando na presença amiga, no olhar desinteressado. Cantou em seus ouvidos uma serenata de compaixão, mostrou-a suas qualidades e potencialidades, destruiu a imagens do falso deus condenador e ofereceu na força da graça a presença do Deus de Amor.

Este salmo cantarolado pelo Salvador fugiu às regras, pois nele os desafinados existencialmente encontraram espaço, os que nunca acertaram um compasso, Nele puderam acertar o passo. Não apenas cantaram, mas dançaram, pois não tinham mais nos ombros o fardo do deus dominador e implacável, pois o maestro artesão os ensinou que sempre é possível transformar todas as dores em dores de parto, onde o canto do nascente apaga a dor da mãe com uma alegria crescente.

Convivi com uma pessoa que viveu os horrores da guerra: bombas, amados mortos, carnificina, exílio… porém, em sua memória ficou o mais triste, sua mamãe que antes cantava e encantava, não cantava mais, a morte do marido e os horrores contemplados a impediram de cantar e assobiar. Assim, triste e sem encantou se foi esta mamãe na guerra da depressão. Jesus de Nazaré abraçou as nossas dores, curou nossas memórias e tirou dos nossos ombros, o jugo que nos impedia de cantar. Por mais trágico que seja nossa história, tudo pode ser transformado na canção e na dança da Ressurreição. O fruto degustado pelos nossos primeiros pais amargou a humanidade, porém o fruto colhido no altar da Árvore da Cruz transbordou em doçura e é por isso que cantamos.

Neste primeiro domingo da quaresma sofremos com Jesus as tentações de Satanás, mas estas podem ser vencidas, pois o Repentista de Nazaré já mostrou-nos que no palco de uma vida consagrada o Mal já perdeu seu espaço e nada pode tirar coração dos redimidos a harmonia da simplicidade utilizada por Jesus. O Espírito nos conduz hoje ao deserto, atualizamos em nossa história o combate espiritual do Nazareno. Deixemos a graça nos santificar, entoemos os salmos dos encontros eternizados, degustemos a doçura do mel que jorra da Árvore da Cruz e permaneçamos firmes em nosso enredo, cantando e dançando na alegria do Encontro.

Não esqueçamos os compromissos assumidos no início desta quaresma, se as quedas já nos frustram, transformemos tudo isso em arte de superação e renovação. Esqueçamos um pouco as velhas práticas e devoções vazias, cante uma Via Sacra não somente seguindo estolas e quadros pendurados, contemple cada estação nos crucificados de hoje, escolha quatorze lugares onde o cheiro de Deus se encontra, nas sarjetas do abandono, nos olhares desiludidos. Talvez assim, as nossas trevas se transformaram em Sol de Meio Dia, pois cada vez que exalamos o cheiro de Deus nos ambientes repugnantes, encontramos a oportunidade de se transfigurar e vencer a tentação.

Agora, um outro caminho é proposto, os cantos das liturgias infecundas, as vias sacras da mesmice, os retiros egocêntricos, o entretenimento religioso, as pregações de massagem de ego, o curandeirismo do SUS católico, a deplorável teologia da prosperidade disfarçada nos ambientes eclesiais.

Uma grande tentação se apresenta: transformar a Canção do Reino em música de ninar, no sentido da espiritualidade paternalista de um deus que faz todos os gostos da criança birrenta que faz novena, que é dessa ou daquela teologia, deste ou daquele movimento, daquele que é santo que odeia e fala mal das pessoas que tão no mundo etc. Enquanto isso se ajoelha e chora diante do Santíssimo quando se canta “aquela canção”, porém, nunca se ajoelha no serviço da caridade, incapaz de chorar no mistério da compaixão no abraço a dor do outro. A primeira tentação que enfrentamos é a manipulação da face de Deus como bem fez Satanás ao tentar Jesus. Infelizmente, “o espiritualismo” apresentado por Satanás a Jesus é bem presente entre nós hoje. Como é difícil reconhecer que gastamos forças e rezas, alimentando a imagem de um falso deus.

Quaresma é tempo de redescobrir a face de Deus na força da Nova Aliança. Despertemos urgentemente, pois o cristianismo está doente, a Mensagem tem sido manipulada e relativizada, dança-se ao ritmo do conveniente. O perigo que pode destruir o que resta do cristianismo não está na avenida e sim, no centro das comunidades que abordam as Escrituras assim como fez Satanás no Evangelho de hoje. Toquemos nossas consciências e deixemos o Espírito encontrar o ritmo que nossas comunidades precisam para serem discípulas missionárias.

 

Por pe. Éder Carvalho Assunção – Missionário da Prelazia de Lábrea no Corno da África [email protected]

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