Na reserva apurinã, margeando o Caititu…

Somente a Floresta Amazônica e o Rio Passiá podem testemunhar os últimos momentos da vida de  Cleusa. Foi justamente por defender as populações tradicionais desta mesma mata, deste mesmo rio, que o “poderosos de Lábrea” projetaram calar a voz desta mulher. Projetaram… porém… eles esqueceram que a força que move as mulheres de boa vontade vai além do tempo presente. Esta mesma força torna viva toda voz que grita, mesmo que em silêncio, em favor da vida.

Esta mulher profundamente eucarística, portadora de “ciência e caridade”, vivenciou de maneira simplesmente heroica a opção preferencial pelos pobres. Com a vida e a palavra tocou os hansenianos. Com coragem e ternura se fez encarcerada. Com amabilidade se fez educadora. Com uma cuia e um remo se fez ribeirinha. Com generosidade se fez indígena e abraçou o sonho da terra sem males.

O seu corpo se uniu a terra e antes de ser velado pelos seus, foi visitada pelo espírito da floresta que bem conhecia aqueles traços frágeis de uma valente guerreira que subia e descia os rios da região com “ciência e caridade”.

Aquele mesmo corpo que amou profundamente os Povos da Floresta se derramou em ternura. Seu ventre fecundo tocou a Amazônia Bendita, seu corpo doado pelas águas foi banhado. Sua fragilidade manifestou Aquele que era a sua força e que diariamente buscava no silêncio do Sacrário.

Por Pe. Éder Carvalho Assunção – Missionário da Prelazia de Lábrea no Corno da África [email protected]

Abaixo… uma pequena biografia extraída de http://www.agustinosrecoletos.org

No dia 28 de abril de 1985, a missionária agostiniana recoleta Cleusa Carolina Rody Coelho foi assassinada no rio Passiá (Lábrea, AM, Brasil) enquanto tentava por paz na situação criada em torno dos indígenas, no município de Lábrea. Por ironias do destino, um índio apuriná a quem havia ajudado poucos meses antes foi quem a assassinou.

Em Lábrea se escolheu este domingo, 24 de abril, para recordar o cruel assassinato de Cleusa. Uma manifestação popular que se repete a cada ano para pedir a paz e o respeito aos direitos dos diversos povos que habitam a Amazônia.

• A vida de Cleusa

Cleusa nasceu no dia 12 de novembro de 1933 em Cachoeira de Itapemirim (ES). Depois de estudar Magistério, Cleusa decide ingressar na vida religiosa, ante a oposição de grande parte de sua família. Fez sua primeira profissão no dia 3 de outubro de 1953. Depois de trabalhar nas comunidades de Lábrea, Colanita e Vitória, licenciou-se em Letras Anglo-Germânicas. Dominava o inglês, francês, italiano, espanhol e alemão.

Passou pelas comunidades de Lábrea (1966-1970) Vitória (1970-1973), Manaus (1973-1979) e Lábrea (1979-1985). Em 1982 a Assembléia da Prelazia decide assumir a questão indígena como prioridade. Começavam os ataques contra os índios, invasões de suas terras, mortes, doenças… os latifundiários roubavam terras com a colaboração das autoridades locais. Cleusa pediu para deixar o colégio e dedicar-se à causa indígena.

• Cleusa luta pela paz e os direitos indígenas

Neste ambiente, um filho do cacique apuriná Agostinho foi assassinado por um soldado. Os apurinás mataram um filho do soldado. Cleusa conseguiu que os apurinás se mudassem para Japiím, no rio Passiá, a mais de 30 km. de Lábrea, para evitar enfrentamentos. E nasceu uma grande amizade e respeito mútuo entre Cleusa e Agostinho.

• Os fatos do martírio de Cleusa.

Raimundo Podivem e Edivar, índios, acompanhados de Damásio, não índio, se esconderam do cacique Agostinho nos limites da aldeia Japiím. A entrada destes três personagens nesta região era a ruptura do acordo pelo qual nenhum branco poderia entrar nestas terras sem autorização. Acordo que havia propiciado a paz entre os apurinás e a polícia militar.

Quando Agostinho soube do feito, pediu à Funai (Fundação Nacional do Índio, o órgão público que deve velar pelos interesses indígenas) que lhe permitisse confiscar a colheita dos que tinham entrado sem permissão em sua área. É-lhe concedida a petição.

Agostinho confiscou a colheita de castanha de Damásio, mas permitiu que os dois apurinás levassem o que tinham colhido. Além disso, deu permissão a Raimundo Podivem para voltar a recolher castanha em Japiím, pois ele era apuriná, sempre que não fosse em companhia de Edivar e Damásio. Mas Raimundo Podivem entendeu que Agostinho não lhe tinha tratado bem e se sentiu relegado pelo cacique.

Ao amanhecer da quarta-feira, 24 de abril Raimundo Podivem mata a tiros de escopeta Arnaldo (17 anos, filho de Agostinho) e Maria, a mãe do rapaz. Outros moradores da casa conseguiram fugir e puderam avisar a Agostinho. Este, ao voltar à sua casa viu a sua mulher e seu filho acabados a tiros. Os sepultou.

Ao entardecer da sexta-feira 26 de abril, Cleusa recebia a noticia do assassinato de Maria e Arnaldo. As religiosas que moravam com Cleusa afirmaram tê-la visto assustada e muito nervosa nesta ocasião. No sábado pela manhã, Cleusa comunicou sua decisão de ir a Japiím para levar consolo ao cacique Agostinho e evitar mais mortes. As religiosas expressaram a inoportunidade desta viagem e os perigos que poderia enfrentar.

• Navegando para a morte

Ao chegar a Japiím, Cleusa encontrou a aldeia deserta com duas novas sepulturas. Na manhã seguinte, apareceu o cacique Agostinho com os seus. Tinham se escondido na selva. Cleusa lhe recomendou permanecer na aldeia e manter a calma, porque ela iria a Lábrea para denunciar os fatos às autoridades.

Cleusa e Raimundo Paulo iniciaram sua volta a Lábrea descendo o Passiá quase ao mesmo tempo em que Raimundo Podivem começava a subir o rio em sua procura. Já no dia anterior os tinha ameaçado de morte na presença de algumas testemunhas. Até que as canoas se encontraram.

Raimundo Podivem era apuriná. Um ano antes, Cleusa o tinha encontrado muito doente na aldeia indígena Arapaçú. Cleusa o levou a Lábrea e o cuidou até que se recuperasse. Cleusa o reconheceu na outra canoa e lhe fez um sinal para conversar. Mas Raimundo Podivem disparou um tiro em Raimundo Paulo. A bala lhe atingiu na região lombar.

— Joga-te na água, meu filho, tu tens filhos para cuidar, gritou Cleusa a Raimundo Paulo.

Raimundo Paulo, ferido, dormiu na selva. Conseguiu chegar a Lábrea às quatro da tarde da segunda-feira. Refugiou-se na polícia. O agostiniano recoleto Jesús Moraza (hoje bispo de Lábrea) e a missionária agostiniana recoleta Josefina Casa Grande o visitaram e ele lhes contou o que sabia. Iniciaram-se horas e dias de desconforto e aflição.

Em todos existia a Esperança de encontrá-la com vida. Raimundo Paulo somente sabia que tinha sido levada rio acima por Raimundo Podivem. Moraza saiu em busca da missionária. No dia 3 de maio foi localizado o corpo. Conta Jesús Moraza:

“Me avisaram de que alguns urubus voavam por cima em círculo, portanto saí da canoa e entrei na selva, em direção às aves. Aproximadamente a cinqüenta metros descobri o corpo, parcialmente submerso. (…) Os que me acompanhavam, com medo, decidiram que voltássemos para buscar mais ajuda”.

No dia 4 de maio uma expedição (Moraza, o chefe da polícia militar com três soldados, um médico, um índio e o guia) volta onde estava o pelo corpo. Às sete da noite chegavam ao hospital de Lábrea, onde se realizou a autopsia: costelas quebradas; crânio e coluna fraturados; braço direito parcialmente separado do corpo; bala de escopeta no tórax e nas costas. A mão direita não foi encontrada. Às nove horas, Cleusa foi enterrada, devido ao adiantado estado de decomposição.

As testemunhas dos últimos momentos de Cleusa foram o céu e a natureza amazônica, a terra que ela amou. Somente Deus lhe bastou durante sua vida e também em sua morte. Cleusa foi uma religiosa de piedade ardente. Na Eucaristia encontrou forças para viver sua fé e aprender as lições de amor e entrega aos irmãos, aos que sofrem e são marginalizados, especialmente aos índios, por quem deu o supremo testemunho de amor com a entrega de sua própria vida.

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