A Igreja do Brasil neste ano de 2024, nos convidou através da Campanha da Fraternidade a acolher e refletir sobre a Fraternidade e a Amizade Social, inspirada na Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, publicada no ano de 2020, na qual ele manifestou ao mundo uma proposta firme de responsabilidade mútua, que pudesse favorecer a fraternidade e a amizade social, diante dos males que ameaçam a paz no mundo.
Sob o tema: “Fraternidade e Amizade Social” e o lema: “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23, 8), fomos desafiados a ir além dos grupos de amigos e construir uma amizade social, indispensável para uma convivência harmônica e feliz, atentos ao clamor do papa por um mundo onde todos sejamos irmãos.
O mundo, marcado por múltiplas formas de violência, grupos fechados e tendências extremistas (ideológicas, políticas, religiosas), carece de referências que promovam a concórdia e a paz, que testemunhem o amor desde pequenos gestos, ao máximo da entrega e da doação. O convite desafiador para superarmos a cultura da indiferença, que nos cega diante da necessidade do irmão, nos recorda o testemunho da Missionária Agostiniana Recoleta – MAR, Irmã Cleusa Carolina Rody Coelho, martirizada numa missão de paz em defesa dos povos indígenas, na Prelazia de Lábrea, que foi capaz de traduzir em sua vida o valor e a beleza da fraternidade humana, que promove e fortalece a experiência da Amizade Social.
Somente quem experimentou, como Cleusa, a intimidade de uma autêntica amizade com Deus, através de uma vida de oração, contemplação e escuta da Sua Palavra, compreendeu o sentido e a profundeza da Amizade Social, imprimindo em suas atitudes a beleza do “amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço” (FT,n.1).
Sua vida foi marcada pelos sinais dessa intensa amizade e pelo desejo de comunicá-la a todos que encontrava: menores de rua, jovens, idosos, protestantes, estrangeiros, encarcerados, hansenianos, ribeirinhos e indígenas. Ao ser questionada sobre seus dotes humanos mais desenvolvidos, ela respondeu: “A vontade, o amor a todos: Deus, os irmãos, a natureza…” e sobre os trabalhos pelos quais sentia maior inclinação, disse: “Servir aos mais necessitados, seja como enfermeira, educadora, como irmã de todos”.
Ser irmã de todos foi abraçar a universalidade do ser irmã com todas as suas consequenciais, e implicou-lhe a incompreensão da própria comunidade; os olhares atravessados da polícia; a ira dos poderosos da época: autoridades, fazendeiros, posseiros e donos de seringais, que tramaram a sua morte… Por fim, implicou-lhe a própria vida.
Com ousadia evangélica, ela lutou contra os riscos da amizade desprovida da dimensão social e senso de bem comum, que gera atitudes extremistas rejeitando todos aqueles que não tem afinidade com seus interesses. Ela foi ao encontro de todas as pessoas, sobretudo as mais necessitadas: pobres, desprezados e explorados. Ela compreendia que “a missão era um dos lugares mais apropriados para lutar contra as desigualdades, e que lá estava servindo a Deus e ao próximo”. E mesmo quando fora incompreendida em suas atitudes, sempre movidas pelo desejo do bem comum, ela tinha a convicção da necessidade de se “construir fraternidade, tendo a justiça como base de toda convivência humana”.
Seu jeito simples e humilde transparecia a sua alma pura, sempre pronta a promover o diálogo, a solidariedade, a comunhão, a compaixão, a justiça, a paz e a harmonia entre as pessoas. Tudo nela inspirava paz, “o seu mundo era um mundo de perdão e de paz […], em seu coração cabiam todos, protestantes e católicos, políticos de direita e esquerda, todos eram, para ela, filhos de um mesmo Pai e assim os olhava a todos” (Frei Francisco Pierola, OAR).
Irmã Cleusa soube tecer relações fraternas em toda e qualquer situação, o que causava admiração naqueles que tiveram a oportunidade de conviver com ela, especialmente os povos indígenas, que recordam dela com especial carinho, pois ela lhes dedicou muito amor, e foi deles que ela aprendeu a maior lição de fraternidade e descobriu os segredos do amor para servir melhor: “Para mim, fica a riqueza da convivência fraterna… como o índio sabe partilhar!” (Ir. Cleusa).
A dinâmica do amor exige uma maior capacidade de acolher os outros, e tal fora sua amizade, que “ela se fez uma entre eles, Irmã Cleusa fez-se pobre com os pobres, índia com os índios… Sua opção pelos indígenas foi autêntica, e eles a queriam como uma mãe” (Revista Pueblos Del Tercer Mundo).
“Irmã Cleusa; ajudastes aos homens, teus irmãos, a ser mais, a encontrar sua dignidade de filhos. E isso não te perdoaram…” (Pierola). Seu grande coração e inquietude missionária a levaram até ao martírio. Sua morte calada de mártir, como um grito de alegria quebrado no coração da selva Amazônica, pôs em alerta a todas as aves multicores dessa belíssima terra para acompanhar em um rápido voo a sua alma cândida e pura, além das estrelas (Ir. Glória Sanchez, 1985). Seu martírio, em Lábrea, foi consequência clara da sua extrema dedicação ao povo da Amazônia (Ir. Marília Menezes).
Ao insistir na importância da Amizade Social, o Papa Francisco propôs alargar sua compreensão, no sentido de acolher a todos de verdade, com a inclusão dos pobres, dos abandonados, dos doentes e dos últimos da sociedade, com o abraçar da solidariedade humana (Texto Base n.19). Irmã Cleusa, soube viver com autenticidade em seu tempo os valores da Amizade Social e hoje seu testemunho nos ilumina com sua entrega e doação, que muito nos ensina: – Vale a pena arriscar-se!
Por fim, a Campanha da Fraternidade nos mostra que “a autêntica experiência de Amizade tem a sua fonte no Amor”, que se traduz no amor que se estende para além das fronteiras.
Por Marcelo Viana
27 de abril de 2024 – Memória do 39º Ano do Martírio de Irmã Cleusa